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JOGADA DE CRAQUE

janeiro 11th, 2011    Posted in Contos Curtos
 

bola

Inácio lembrava com orgulho seus tempos de atleta. Nunca foi profissional, mas, no futebol de quarta-feira, destacava-se pelo fôlego. Quando perdia, criava confusão se fosse escolhido para sair e dar a vez para o time de fora. Virava goleiro só pra ficar em campo. Inácio gostava de quando chovia. Muita gente faltava e a briga pra ficar em campo era menor. Bons tempos de atleta viveu Inácio.

Hoje, nove anos depois, casado e com a cintura bem maior, Inácio trabalha pra manter a casa. Seu esporte oficial passou a ser a sinuca. Joga religiosamente todas as quintas. Inácio ainda briga pra ficar na mesa quando perde. É um atleta.

O grupo da sinuca sofreu uma baixa. O Velho Antunes, tradicional conselheiro da turma, decidiu aposentar-se. Reclamava que não tinha mais idade pra ficar na fumaça do salão e que, mesmo as partidas, já não lhe davam tanta alegria. Decidira que no seu aniversário de 79 anos levaria um bolinho feito por sua filha mais nova e faria uma despedida em alto estilo. Embora tenha chegado a pensar que, com o grupo menor, sua permanência na mesa aumentaria, Inácio sentiu a saída de Antunes. Pensou no dia em ele mesmo deixaria o esporte e tratou de erguer seu chope para propor um brinde. Antunes merecia.

A vaga de Antunes foi preenchida na semana seguinte por Rogério. O rapaz, sobrinho do Lima, um dos fundadores do grupo, foi convidado. Um convite da diretoria deve ser acatado, mesmo contra vontade de alguns. Inácio não gostou muito. Rogério, apesar do bom desempenho na sinuca, era diferente do resto da turma. Aguardava sua vez calado, bebia refrigerante light, jamais trapaceava. Um dia comentou que, com a sinuca nas quintas, teria atividade para toda as noites da semana. Nadava nos dias pares, jogava bola nas terças e, agora, sinuca nas quintas. Inácio quis saber mais sobre as terças:

- E o futebol? Salão?

- Society.

- Sete pra cada lado?

- Seis na linha e um no gol.

- Quantas de fora?

- Uma. Incompleta.

Aquilo fez a cabeça de Inácio funcionar. Perdeu a partida de sinuca e, para o espanto do grupo, aceitou esperar a próxima sem reclamar. Queria pensar um pouco sobre suas próprias terças. Apesar de estar fora de forma, seus trinta e cinco anos garantiam uma chance de recuperação. Se participasse de um futebol regularmente largaria o cigarro, cuidaria da dieta. Chegou a sentir-se meio ridículo, mas soltou as palavras como quem pula de pára-quedas. De uma vez. Sem pensar:

- Ô, Rogério! Tem lugar pra mim nesse futebol?

- Claro! Trinta reais por mês pra pagar a quadra – Respondeu enquanto mirava na bola azul.

- Terça, tô lá!

Inácio passou o fim-de-semana como criança na véspera de natal. Sábado, no restaurante à quilo, trocou a carne por um frango grelhado. Decidira levar a sério o projeto de voltar a ser um atleta. Não resistiu ao pudim de sobremesa, mas o projeto ainda estava começando.

Na terça Inácio fez piada no trabalho sobre os gols que faria. Lembrou dos gols que já tinha feito dez anos antes. Descreveu jogadas com riqueza de detalhes para diversão de alguns e tédio de outros. Pediu pro chefe para sair um pouco mais cedo naquele dia. Tinha um compromisso. O chefe liberou.

Na escolha dos times, Inácio foi o penúltimo escolhido. Rogério o escalou num gesto político. Seu novo companheiro de sinuca merecia estrear na pelada jogando.

A bola saiu com o time adversário. Inácio, na posição de zagueiro fixo, largou a defesa e correu pra marcar em cima. Se sobrasse pra ele, quem sabe um gol? Sentiu a perna mais pesada do que esperava já na primeira corrida. Quando perguntado se não era melhor voltar pra defesa, concordou com um gesto. Não conseguiria falar. O ar parecia faltar e, enquanto caminhava de volta para o seu campo, ainda pode ver o golaço do outro time. Goleiro driblado, deitado no chão. Tentou não escutar as reclamações, concentrou-se em normalizar a respiração e esperou atento pelo próximo ataque.

Numa dividida no meio de campo a bola espirrou limpa para os pés de Inácio. Ele parou a pelota com o pé esquerdo e, num segundo, planejou um ataque de dar inveja ao Real Madri. Respirou fundo e partiu corajoso. Inácio retirara forças da alma e, com elegância discordante com seu corpo, driblou o primeiro adversário, correndo pela lateral direita. Fez menção ao cruzamento, forçando a parada do zagueiro do outro time. Num golpe de agilidade, Inácio seguiu avançando com a bola. Seu próprio time estava surpreso. Um craque.

Diante da área inimiga, trocou a bola de pé. O gesto deslocou um zagueiro e deixou o caminho aberto para um goleiro com cara de assustado. Não havia deixado o gol e aguardava atento o chute do estranho atacante. Inácio preparou uma bomba, mas, ao chegar com o pé na bola, fez uma pausa, esperou o goleiro pular e, em seguida, deu toquinho de cobertura com categoria, guardando a bola no fundo da rede. Antes de comemorar, Inácio sentiu o ar lhe faltando. Seu time pulava à sua volta e ele tentava sorrir. Antes de cair deitado, ajoelhou-se e sorriu levando a mão ao peito. Inácio fez uma jogada de craque. E não precisaria mais deixar o campo até a chegada da ambulância. A de fora, era dele.

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HOJE

novembro 28th, 2010    Posted in Contos Curtos
 

blogImageTropeçou no batente do elevador. Antes de cair no chão, lembrou que esquecera de colocar no bolso o bilhete premiado da loteria. Fosse uma grande soma, jamais esqueceria. Este era apenas um terceiro prêmio que a sorte dividiu entre mais de cinco dúzias de co-jogadores. Pegaria depois. Quem sabe uma troca por mais jogos, talvez amanhã.

Entrou no carro, girou a chave ainda pensando no que faria com um primeiro prêmio recebido com o sorriso de ganhador único. Ouviu o cano de descarga homenageá-lo com uma salva militar e sorriu acelerando seu Uno 88, travestido pela fantasia de Porsche 2010.

Sem lembrar de afivelar o desconfortável cinto de segurança, que repetidas vezes deixou-lhe o jaleco branco de biólogo com aspecto de vascaíno pela listra de poeira preta, foi multado. Não percebeu, mas foi. Guardas municipais de trânsito sabem se esconder com seus pequenos blocos de vítimas.

No caminho do trabalho, imaginava nunca mais trabalhar. Lembrava com requintes de perfeição de sua adolescência, com raros detalhes como o cheiro das tardes de terça-feira diante da TV e o gosto do refrigerante de domingo, já sem gás no dia seguinte.

De forma automática seu carro seguia sozinho para o endereço em que ficava cerca de nove horas por dia. Sem dedicar atenção maior ao trânsito, observava os prédios. Antigos e novos. Simples e luxuosos. Alguns deles, já visitados, ofereciam-lhe um banquete de lembranças, boas e más. Dos mais bonitos projetava comparações, dedicando-se a perceber qual deles abrigaria seu lar no caso de ganhar uma bolada. Ao passar pelo apartamento de uma ex-namorada sentiu-se com visão de raio-x, interpretando cada detalhe do corredor aonde por muitas vezes desfilou irritado, gritando que não voltava mais.

Distraído percebeu que o sinal brilhava amarelo e pensou em acelerar. Foi interrompido quando notou um pequeno garoto maltrapilho que seguia para o centro da faixa de pedestres segurando algumas velhas bolas de tênis. Freou o carro e ficou hipnotizado pela tristeza na cara da criança que podia ver através do girar das bolinhas que voavam controladas pelas mãos sujas e habilidosas. Entendeu o malabarismo como uma metáfora da vida que o conduzia. Incerto vôo.

Antes do sinal tornar-se verde sobre a cabeça da criança, viu o número ser interrompido. O malabarista agora dirigia-se para sua janela com uma das mãos estendidas e a outra abraçando meio sem jeito as pequenas bolas sobre o peito. Já presenciara a cena anteriormente, mas, não como hoje. Deu-lhe algumas moedas que sobravam no cinzeiro do carro e ingrenou hesitante a primeira marcha. Seguiu mais alguns metros, encostou o carro e chorou. Pela primeira vez em muito tempo, viveu o momento presente. Fora acordado de um sonho que o transportava entre o passado e o futuro desde que se tornara adulto. Péssimo malabarista com o que sentia, deixou cair suas lágrimas e agradeceu ao menino por um olhar no retrovisor.

Marcio Vianna

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